Cabo Bruno, um matador em SP, foi meu garçon por um dia.

 O Cabo Bruno, ou Florisvaldo de Oliveira, quando foi preso em 1985, em São Paulo


Ele foi um dos maiores matadores do Brasil. Solitário, recebia dinheiro de comerciantes para detonar ladrões e bandidos em geral. Cabo da Polícia Militar, agia sempre sozinho. Circulava pela zona sul de São Paulo dirigindo um carro Chevrolet, modelo Opala, de cor preta, sempre como um lobo feroz prestes a atacar. Decidia por conta própria quem deveria morrer, sem chance alguma de se defender. Julgador e carrasco. Implacável.

O matador ficou por um bom tempo no Presídio Romão Gomes, a cadeia especial para policiais militares e ex-policiais, no bairro do Barro Branco. Ficam ali porque se forem misturados à população carcerária comum, provavelmente seriam trucidados. É uma questão de sobrevivência.


Foi nesse presídio que, a convite do então comandante, o capitão PM Luiz Nakaharada, fui almoçar. O capitão, maroto, não me avisou de nada e na hora da refeição ser servida, fui surpreendido pelo garçon que nos atendia: o cabo Bruno. O matador, solícito, me perguntou se preferia um suco ou água e até o ponto da carne que eu mais gostava, dispondo cuidadosamente os talheres na mesa. Fiquei admirado com a situação, curioso até, vendo o garçon da copa do diretor, agindo com a gentileza típica de um maitre. Estar ali equivalia a um atestado de bom comportamento.

O capitão Nakaharada se divertia com as minhas reações, mas fiz de tudo para não demonstrar receio algum. Enquanto tomava meu suco de laranja e Bruno perguntava se eu queria pedras de gelo no copo, fiquei relembrando como conhecia o personagem, tema de muitas matérias que fiz para o extinto Jornal da Tarde, e como foram sendo feitas as descobertas pelo Departamento de Homicídios, com a preciosa ajuda da Corregedoria da PM.

O critério adotado por Bruno era o de um Lombroso às avessas. Ao contrário do psiquiatra italiano, que pretendia provar que o criminoso nato teria características faciais próprias, principalmente os olhos, a testa, os lábios e as orelhas, o cabo Florisvaldo de Oliveira preferia adotar um estilo pessoal: se o alvo fosse tatuado, seria comprovadamente bandido. É certo que, no passado, as tatuagens eram símbolo característico de quem passasse por um presídio. Nas ruas, policiais fazendo ronda os tinham como principais “suspeitos”, por mais vago que possa ser este conceito. Até hoje, existem estudos sobre significados de determinados tipos de tatuagem, que podem identificar um assassino, um ladrão de bancos, um matador de policiais e outros degustadores do cardápio penal. Mas existem, hoje dominantes, as tatuagens que não querem dizer nada disso, sendo muito usadas por jovens ou não, que vão muito além dos estilos antigos, cobrindo braços e pernas, testas e pescoço, costas, nucas e calcanhares. Policiais antigos caçavam tatuados. Policiais contemporâneos gostam de usar tatuagens.

Cabo Bruno se entrega à polícia em 1988.

Sendo assim, o matador Bruno cometeu muitos equívocos. Como fuzilar um homem que foi morto gritando por inocência. Tinha imagem religiosa num dos pulsos. Era apenas um devoto de Nossa Senhora Aparecida. Nos tempos de Cesare Lombroso, descobriu-se, cientificamente, que suas teses eram como o café: excitavam a todos e não nutriam a ninguém. Nos tempos do cabo Bruno, comerciantes e moradores também ficavam excitados. Pensavam que bandidos perigosos haviam sido mortos. Era o suficiente para satisfazer a cumplicidade financiada. Mais de cinquenta assassinatos, ao longo dos anos oitenta.

O matador tinha uma peculiariedade: gostava de vestir-se de preto, como o ator de cinema Charles Bronson, famoso pela série de filmes Desejo de Matar, procurando imitar seus jeitos de falar e andar. Era o ídolo de Bruno. Falsos “especialistas” daqueles tempos atribuíam a Bronson as epidemias de violência. Bronson morreu e a violência não acabou. “Especialistas” de hoje dizem que Bruno chefiava um grupo de extermínio. Falso: ele nunca agiu com parceiros. À época dos crimes, Bruno tinha um pouco mais de 50 anos de idade. Os sucessivos julgamentos dos assassinatos, pelo Tribunal do Júri, somaram penas que chegaram a 117 anos, quatro meses e três dias. Cana dura. Fugiu três vezes. Foi recapturado, pela última vez, na cidade de Paragominas (PA), graças a uma investigação espetacular da Corregedoria da Polícia Militar. Ela descobriu que Bruno mandava regularmente cartas para familiares. Um dos policiais disfarçou-se de carteiro e ficou por vários dias na rua onde morava uma potencial destinatária. A esperada carta chegou. Interceptada, continha o paradeiro de Bruno. O coronel Roberto Lemes, do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar, me informou, numa madrugada, da prisão e apresentação do foragido Bruno. Ele foi levado para o presídio militar do Barro Branco.

Há muita gente que não se conforma em ver policial-militar num presídio próprio. Acham que isso pode valer apenas enquanto ele estiver na ativa, mas deixa de valer quando é expulso da corporação. Assim aconteceu com Bruno: exonerado, foi transferido para um presídio considerado de segurança máxima, a penitenciária de Tremembé, no Vale do Paraíba.

 O cárcere foi duro com Bruno. Vinte e sete anos. No último presídio, procurou dar sinais de uma metamorfose, transformando-se em leitor bíblico e anunciado que, quando conseguisse sair, pretendia transformar-se num pregador, anunciando boas novas e esquecendo os tempos de porta-voz da morte.

NINGUÉM ESQUECEU BRUNO

Mas o passado de Bruno nunca foi esquecido no mundo do crime. Ele estava previamente condenado a pagar por tudo o que fez, não por um tribunal convencional, mas pelos comandantes do crime, aqueles que conseguiram transformar presídio em escritório e que agem implacavelmente, lá dentro e aqui fora. Sua morte estava decretada. Seria apenas uma questão de tempo. Uma tocaia e pronto. Foi assim que aconteceu com Ismael Pedrosa, o diretor da antiga Casa de Detenção nos tempos da invasão que terminou com 111 presos mortos. De lá, Ismael foi dirigir a antiga Casa de Custódia de Taubaté, berço do PCC, a máfia cabocla. Foi emboscado na cidade, tentou escapar da morte dando marcha-a-ré no carro que dirigia por um quarteirão inteiro, até uma fuzilaria crivá-lo de balas.

Florisvaldo de Oliveira, o Cabo Bruno, e uma de suas pinturas feitas na prisão.


Na prisão, gostava de passar o tempo fazendo pinturas com quadros convencionais. Conheceu uma cantora gospel, Dayse França, e casou-se com ela. Mostrando entusiasmo com ensinamentos religiosos, passou a ser considerado pastor, sem formação teológica alguma, mas usando frases de efeito, como anunciar-se como “saqueador do inferno” porque iria “roubar almas de Satanás”. Dayse contaria, mais tarde, que ele demonstrava desejo de pedir perdão às famílias de suas vítimas. Dizia ter aprendido a amar e queria resgatar almas. “Amar é mudar a alma de casa”, como escreveu o poeta gaúcho Mario Quintana.

Na rua, solto, não viveu muito para desfrutar das delícias da tão esperada liberdade. Foi a um culto religioso com a mulher, na cidade de Aparecida, e na volta para casa, em Pindamonhangaba, dois homens bem armados estavam à sua espera. A emboscada da morte anunciada. Ao descer do carro, foi atingido por uma chuva de projéteis, vinte tiros de pistola 380 e ponto 40, no rosto e no peito. Tiros na cara no mundo do crime querem dizer que a vítima só merece uma única coisa na vida: morrer.

Lembro-me de Bruno meu garçon no presídio. Como não sou lombrosiano, se não conhecesse a sua história não poderia jamais imaginá-lo como um assassino impiedoso. Foi a última vez que o vi. Nossas últimas palavras nesse encontro: “o senhor não aceita um café?” e “não, muito obrigado”.

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